A política dos EUA para o México é um pesadelo. Ela minou a soberania mexicana, corrompeu o sistema político e militarizou o país. Obteve também como resultado a morte violenta de milhares de civis, pobres em sua maioria. Mas Washington não está nenhum pouco preocupado com os “danos colaterais”, desde que possa vender mais armas, fortalecer seu regime de livre comércio e lavar mais lucros das drogas em seus grandes bancos. Os principais bancos dos EUA se tornaram sócios financeiros ativos dos cartéis assassinos da droga. A guerra contra as drogas é uma fraude. Ela não tem a ver com proibição, mas sim com controle. O artigo é de Mike Whitney.
Mike Whitney - SinPermiso
Imagine qual seria sua reação se o governo mexicano decidisse pagar 1,4 milhões de dólares a Barack Obama para usar tropas norte-americanas e veículos blindados em operações militares em Nova York, Los Angeles e Chicago, estabelecendo postos de controle, e elas acabassem se envolvendo em tiroteios que resultassem na morte de 35 mil civis nas ruas de cidades norte-americanas. Se o governo mexicano tratassem assim os Estados Unidos, vocês o considerariam amigo ou inimigo? Pois é exatamente assim que os EUA vêm tratando o México desde 2006.
A política dos EUA para o México – a Iniciativa Mérida – é um pesadelo. Ela minou a soberania mexicana, corrompeu o sistema político e militarizou o país. Obteve também como resultado a morte violenta de milhares de civis, pobres em sua maioria. Mas Washington não está nenhum pouco preocupado com os “danos colaterais”, desde que possa vender mais armas, fortalecer seu regime de livre comércio e lavar mais lucros das drogas em seus grandes bancos. É tudo muito lindo.
Há alguma razão para dignificar essa carnificina chamando-a de “Guerra contra as drogas”?
Não faz nenhum sentido. O que vemos é uma oportunidade descomunal de empoderamento por parte das grandes empresas, das altas finanças e dos serviços de inteligência norteamericanos. E Obama segue meramente fazendo seu leilão, razão pela qual – não é de surpreender – as coisas ficaram tão ruins sob sua administração. Obama não só incrementou o financiamento do Plano México (conhecido como Mérida), como deslocou mais agentes norteamericanos para trabalharem em segredo enquanto aviões não tripulados realizam trabalhos de vigilância. Deu para ter uma ideia do cenário?
Não se trata de uma pequena operação de apreensão de drogas, é outro capítulo da guerra norteamericana contra a civilização. Vale lembrar uma passagem de um artigo de Laura Carlsen, publicado no Counterpunch, que nos mostra um elemento de fundo:
“A guerra contra as drogas converteu-se no veículo principal de militarização da América Latina. Um veículo financiado e impulsionado pelo governo norteamericano e alimentado por uma combinação de falsa moral, hipocrisia e muito de temor duro e frio. A chamada “guerra contra as drogas” constitui, na realidade, uma guerra contra o povo, sobretudo contra os jovens, as mulheres, os povos indígenas e os dissidentes. A guerra contra as drogas se converteu na forma principal do Pentágono ocupar e controlar países à custa de sociedades inteiras e de muitas, muitas vidas”.
“A militarização em nome da guerra contra as drogas está ocorrendo mais rápida e conscienciosamente do que a maioria de nós provavelmente imaginou com a administração de Obama. O acordo para estabelecer bases na Colômbia, posteriormente suspenso, mostrou um dos sinais da estratégia. E já vimos a extensão indefinida da Iniciativa de Mérida no México e América Central, incluindo, tristemente, os navios de guerra enviados a Costa Rica, uma nação com uma história de paz e sem exército...”
“A Iniciativa de Mérida financia interesses norteamericanos para treinar forças de segurança, proporciona inteligência e tecnologia bélica, aconselha sobre as reformas do Judiciário, do sistema penal e a promoção dos direitos humanos, tudo isso no México” (“The Drug War Can’t Be Improved Only be Ended” – “A Guerra contra as drogas não pode ser melhorada, só terminada”, Laura Carlsen, Counterpunch)
A impressão que dá é que Obama está fazendo tudo o que pode para converter o México em uma ditadura militar, pois é exatamente isso o que ele está fazendo. O Plano México é uma farsa que esconde os verdadeiros motivos do governo, que consiste em assegurar-se de que os lucros do tráfico de drogas acabem nos bolsos das pessoas adequadas. É disso que se trata: de muitíssimo dinheiro. E é por isso que o número de vítimas disparou, enquanto a credibilidade do governo mexicano caiu como nunca em décadas. A política norteamericana converteu grandes extensões do país em campos de morte e a situação não para de piorar.
Veja-se esta entrevista com Charles Bowden, que descreve como é a vida das pessoas que vivem na Zona Zero da guerra das drogas no México, Ciudad Juárez:
“Isso ocorre em uma cidade onde muita gente vive em caixas de papelão. No último ano, dez mil negócios encerraram suas atividades. De 30 a 60 mil pessoas, sobretudo os ricos, mudaram-se para El Paso, no outro lado do rio, por razões de segurança. Entre eles, o prefeito de Juárez, que prefere ir dormir em El Paso. O editor do diário local também vive em El Paso. Entre 100 e 400 mil pessoas simplesmente saíram da cidade. Boa parte do problema é econômico. Não se trata simplesmente da violência. Durante esta recessão desapareceram pelo menos 100 mil empregos das empresas fronteiriças devido à competição asiática. As estimativas são de que há entre 500 e 900 bandos de delinquentes”.
Há 10 mil soldados das tropas federais e agentes da Polícia Federal vagando por ali. É uma cidade onde ninguém sai à noite, na qual todos os pequenos negócios pagam extorsão, onde foram roubados oficialmente 20 mil automóveis no ano passado e assassinadas 2.600 pessoas no mesmo período. É uma cidade onde ninguém segue o rastro das pessoas que foram sequestradas e não reaparecem, onde ninguém conta as pessoas enterradas em cemitérios secretos onde, de forma indecorosa, volta e meia aparecem alguns corpos em meio a alguma escavação. O que temos é um desastre e um milhão de pessoas que são muito pobres para poder ir embora. A cidade é isso”. (Charles Bowden, Democracy Now)
Isso não tem a ver com as drogas; trata-se de uma política externa louca que apoia exércitos por delegação para impor a ordem por meio da repressão e militarização do Estado policial. Trata-se de expandir o poder norte-americano e de engordar os lucros de Wall Street. Vejamos mais alguns dados de fundo proporcionados por Lawrence M. Vance, na Future of Freedom Foundation:
“Um número não revelado de agentes da lei norteamericanos trabalha no México (...) A DEA tem mais de 60 agentes no México. A esses se somam os 40 agentes de Imigração e Aduanas, 20 auxiliares do Serviço de Comissários de Polícia e 18 agentes da Agência de Álcool, Tabaco, Armas de Fogo e Explosivos, mais os agentes do FBI, do Serviço de Cidadãos e Imigração, Aduana e Proteção de Fronteiras, Serviço Secreto, guarda-costas e Agência de Segurança no Transporte. O Departamento de Estado mantém também uma Seção de Assuntos de Narcóticos. Os EUA também forneceram helicópteros, cães farejadores de drogas e unidades de polígrafos para examinar os candidatos a trabalhar em organismos de aplicação das leis”.
“Os aviões não tripulados norteamericanos espionam os esconderijos dos carteis e os sinais rastreadores norte-americanos localizam com exatidão os carros e telefones dos suspeitos. Agentes norteamericanos seguem os rastros, localizam chamadas telefônicas, leem correios eletrônicos, estudam padrões de comportamento, seguem rotas de contrabando e processam dados sobre traficantes de drogas, responsáveis pela lavagem de dinheiro e chefes dos cartéis. De acordo com um antigo agente anti-droga mexicano, os agentes norteamericanos não estão limitados em suas escutas no México pelas leis dos EUA, desde que não se encontrem em território norteamericano e não grampeiem cidadãos norteamericanos. (“Why Is the U.S. Fighting Mexico’s Drug War?”, “Por que os EUA travam a guerra contra as drogas no México?”, Laurence M. Vance, The Future of Freedom Foundation).
Isso não é política externa, mas sim outra ocupação norteamericana. E adivinhem quem enche os cofres com essa pequena fraude sórdida? Wall Street. Os grandes bancos ficam com sua parte como sempre fazem. Vejamos essa passagem de um artigo de James Petras intitulado “How Drug profits saved Capitalism” (“Como os lucros das drogas salvaram o capitalismo”, publicado em Global Research). É um estupendo resumo dos objetivos que estão configurando essa política:
“Enquanto o Pentágono arma o governo mexicana e a DEA (Drug Enforcement Agency, a agência anti-droga dos EUA) põe em prática a “solução militar”, os maiores bancos dos EUA recebem, lavam e transferem centenas de bilhões de dólares nas contas dos senhores da droga que, com esse dinheiro, compram armas modernas, pagam exércitos privados de assassinos e corrompem um número indeterminado de funcionários encarregados de fazer cumprir a lei de ambos os lados da fronteira...”
“Os lucros da droga, no sentido mais básico, são assegurados mediante a capacidade dos carteis de lavar e transferir bilhões de dólares para o sistema bancário norteamericano. A escala e a envergadura da aliança entre a banca norteamericana e os carteis da droga ultrapassa qualquer outra atividade do sistema financeiro privado norteamericano. De acordo com os registros do Departamento de Justiça dos EUA, só um banco, o Wachovia Bank (propriedade hoje de Wells Fargo), lavou 378.300 milhões de dólares entre 1° de maio de 2004 e 31 de maio de 2007 (The Guardian, 11 de maio de 2011). Todos os principais bancos dos EUA tornaram-se sócios financeiros ativos dos cartéis assassinos da droga”.
“Se os principais bancos norteamericanos são os instrumentos financeiros que permitem os impérios multimilionários da droga operar, a Casa Branca, o Congresso dos EUA e os organismos de aplicação das leis são os protetores essenciais destes bancos (...) A lavagem de dinheiro da droga é uma das fontes mais lucrativas de lucros para Wall Street. Os bancos cobram gordas comissões pela transferência dos lucros da droga que, por sua vez, emprestam a instituições de crédito a taxas de juros muito superiores às que pagam – se é que pagam – aos depositantes dos traficantes de drogas.
Inundados pelos lucros das drogas já desinfetados esses titãs norteamericanos das finanças mundiais podem comprar facilmente os funcionários eleitos para que perpetuem o sistema”. (“How Drug Profits saved Capitalism, James Petras, Global Research).
Vamos repetir: “Todos os principais bancos dos EUA se tornaram sócios financeiros ativos dos cartéis assassinos da droga”.
A guerra contra as drogas é uma fraude. Ela não tem a ver com proibição, mas sim com controle. Washington emprega a força para que os bancos possam garantir um bom lucro. Uma mão lava a outra, como ocorre com a Máfia.
(*) Mike Whitney é um analista político independente que vive no estado de Washington e colabora regularmente com a revista norteamericana CounterPunch.
Tradução: Katarina Peixoto
http://www.cartamaior.com.br/templates/materiaMostrar.cfm?materia_id=17938&boletim_id=938&componente_id=15
segunda-feira, 20 de junho de 2011
Modelo de participação popular de Recife é premiado na Alemanha
Brasil | 16.06.2011
Premiê Merkel cumprimenta o prefeito João da Costa. Capital pernambucana é homenageada na primeira edição do Prêmio Reinhard Mohn, concedido pela Fundação Bertelsmann. Recife foi escolhida por seu modelo de orçamento participativo.
Mais de cem mil jovens e adultos envolvem-se na vida política de Recife a cada ano, participando ativamente do desenvolvimento da cidade, através de fóruns e reuniões nas escolas. Por tal modelo de orçamento participativo, a metrópole pernambucana recebeu nesta quinta-feira (16/06), na Alemanha, o primeiro Prêmio Reinhard Mohn, no valor de 150 mil euros.
Promovido pela Fundação Bertelsmann, o prêmio foi entregue ao prefeito de Recife, João da Costa, do PT, que destacou a importância do engajamento social para construir uma nova democracia, baseada na participação do cidadão. A cerimônia realizada na cidade alemã de Gütersloh também contou com a presença da chanceler federal alemã, Angela Merkel, que discursou para cerca de 500 convidados.
O objetivo da premiação – batizada em homenagem a Reinhard Mohn, que criou a Fundação Bertelsmann em 1977 – é estimular o debate sobre as possibilidades de ação num sistema democrático sustentável. O lema da edição de 2011 é "Vitalizar a democracia – fortalecer a participação política". "Buscamos identificar bons exemplos de participação civil, que provam que a democracia pode ser vitalizada, ou seja, que mais cidadãos podem participar das decisões públicas", disse Frank Frick, diretor da fundação.
Em Recife, a participação popular é praticada durante todo o ano. Em reuniões e na internet, cidadãos dão sugestões de medidas para a cidade, as acompanham durante a sua implementação e definem prioridades em 15 áreas, como cultura, educação e juventude.
Divididos em 18 microrregiões, os moradores da metrópole de 1,6 milhão de habitantes decidem o que é mais urgente para seus bairros: asfaltar uma rua, abrir um posto de saúde ou construir moradias. Somente para os próximos três meses, 95 encontros já estão agendados.
Tal exemplo de engajamento da população fez com que a capital pernambucana fosse escolhida entre 123 projetos inscritos para o prêmio, de 36 países. Uma comissão elegeu sete finalistas – dos Estados Unidos, do Canadá, da Austrália, da Argentina e do Brasil. O modelo de Recife foi, então, eleito através de uma votação online, da qual participaram 11.600 cidadãos alemães. O segundo colocado foi outro projeto brasileiro, de Belo Horizonte.
Modelo recifense
O orçamento participativo foi introduzido em Recife em 2001. O exemplo veio de Porto Alegre, no Rio Grande do Sul, onde o PT iniciou experiências com essa forma de democracia direta há 22 anos. Em uma década, mais de 3 mil medidas do orçamento já foram implementadas em Recife, segundo a fundação.
"Não ficamos surpresos por o prêmio ser entregue a um projeto do Brasil, onde verificamos que muita coisa vem acontecendo nos campos da democracia e da participação civil", disse Alexander Koop, gerente de projetos da Fundação Bertelsmann e membro da equipe do Prêmio Reinhard Mohn.
Koop visitou os sete projetos finalistas e, durante uma semana em Recife, filmou reuniões de bairro, realizou entrevistas e coletou o máximo de detalhes possíveis para transmitir aos alemães através do site da fundação.
Um dos diferenciais de Recife é que, para estimular o envolvimento dos jovens, a cidade promove um processo participativo na rede de ensino pública, em que os alunos podem dar sugestões para melhorar suas escolas. Uma das alunas engajadas, Keila de Oliveira, da sétima série, acompanhou o prefeito durante a premiação.
Exemplo para a Alemanha
O modelo de participação da sociedade civil de Recife é diferente do praticado na Alemanha. Frick, diretor da Fundação Bertelsmann, aponta como uma vantagem o fato de a democracia brasileira ser relativamente recente. Para ele, no Brasil se teve a coragem de experimentar coisas que não se ousariam implementar tão rapidamente em democracias estabelecidas, como as da Europa, por exemplo.
Na Alemanha, segundo o gerente de projetos Koop, os orçamentos participativos costumam ser limitados a duas ou três semanas, enquanto os recifenses participam da política o ano todo. "Se entendermos que a participação civil deve ser um processo contínuo para que os cidadãos confiem em tais procedimentos políticos, então aprendemos muito com Recife", afirma.
Outra diferença apontada por Koop é a presença de um sistema de delegação direta, em que delegados vindos da comunidade são votados para representar os interesses dos cidadãos. "Essa é uma participação muito mais forte do que a que conhecemos nos municípios alemães e algo que obviamente pode servir de exemplo por aqui."
Merkel também afirmou que a Alemanha pode aprender com o exemplo de Recife. "As possibilidades de maior participação certamente não estão sendo aproveitadas o suficiente", disse.
Premiê Merkel cumprimenta o prefeito João da Costa. Capital pernambucana é homenageada na primeira edição do Prêmio Reinhard Mohn, concedido pela Fundação Bertelsmann. Recife foi escolhida por seu modelo de orçamento participativo.
Mais de cem mil jovens e adultos envolvem-se na vida política de Recife a cada ano, participando ativamente do desenvolvimento da cidade, através de fóruns e reuniões nas escolas. Por tal modelo de orçamento participativo, a metrópole pernambucana recebeu nesta quinta-feira (16/06), na Alemanha, o primeiro Prêmio Reinhard Mohn, no valor de 150 mil euros.
Promovido pela Fundação Bertelsmann, o prêmio foi entregue ao prefeito de Recife, João da Costa, do PT, que destacou a importância do engajamento social para construir uma nova democracia, baseada na participação do cidadão. A cerimônia realizada na cidade alemã de Gütersloh também contou com a presença da chanceler federal alemã, Angela Merkel, que discursou para cerca de 500 convidados.
O objetivo da premiação – batizada em homenagem a Reinhard Mohn, que criou a Fundação Bertelsmann em 1977 – é estimular o debate sobre as possibilidades de ação num sistema democrático sustentável. O lema da edição de 2011 é "Vitalizar a democracia – fortalecer a participação política". "Buscamos identificar bons exemplos de participação civil, que provam que a democracia pode ser vitalizada, ou seja, que mais cidadãos podem participar das decisões públicas", disse Frank Frick, diretor da fundação.
Em Recife, a participação popular é praticada durante todo o ano. Em reuniões e na internet, cidadãos dão sugestões de medidas para a cidade, as acompanham durante a sua implementação e definem prioridades em 15 áreas, como cultura, educação e juventude.
Divididos em 18 microrregiões, os moradores da metrópole de 1,6 milhão de habitantes decidem o que é mais urgente para seus bairros: asfaltar uma rua, abrir um posto de saúde ou construir moradias. Somente para os próximos três meses, 95 encontros já estão agendados.
Tal exemplo de engajamento da população fez com que a capital pernambucana fosse escolhida entre 123 projetos inscritos para o prêmio, de 36 países. Uma comissão elegeu sete finalistas – dos Estados Unidos, do Canadá, da Austrália, da Argentina e do Brasil. O modelo de Recife foi, então, eleito através de uma votação online, da qual participaram 11.600 cidadãos alemães. O segundo colocado foi outro projeto brasileiro, de Belo Horizonte.
Modelo recifense
O orçamento participativo foi introduzido em Recife em 2001. O exemplo veio de Porto Alegre, no Rio Grande do Sul, onde o PT iniciou experiências com essa forma de democracia direta há 22 anos. Em uma década, mais de 3 mil medidas do orçamento já foram implementadas em Recife, segundo a fundação.
"Não ficamos surpresos por o prêmio ser entregue a um projeto do Brasil, onde verificamos que muita coisa vem acontecendo nos campos da democracia e da participação civil", disse Alexander Koop, gerente de projetos da Fundação Bertelsmann e membro da equipe do Prêmio Reinhard Mohn.
Koop visitou os sete projetos finalistas e, durante uma semana em Recife, filmou reuniões de bairro, realizou entrevistas e coletou o máximo de detalhes possíveis para transmitir aos alemães através do site da fundação.
Um dos diferenciais de Recife é que, para estimular o envolvimento dos jovens, a cidade promove um processo participativo na rede de ensino pública, em que os alunos podem dar sugestões para melhorar suas escolas. Uma das alunas engajadas, Keila de Oliveira, da sétima série, acompanhou o prefeito durante a premiação.
Exemplo para a Alemanha
O modelo de participação da sociedade civil de Recife é diferente do praticado na Alemanha. Frick, diretor da Fundação Bertelsmann, aponta como uma vantagem o fato de a democracia brasileira ser relativamente recente. Para ele, no Brasil se teve a coragem de experimentar coisas que não se ousariam implementar tão rapidamente em democracias estabelecidas, como as da Europa, por exemplo.
Na Alemanha, segundo o gerente de projetos Koop, os orçamentos participativos costumam ser limitados a duas ou três semanas, enquanto os recifenses participam da política o ano todo. "Se entendermos que a participação civil deve ser um processo contínuo para que os cidadãos confiem em tais procedimentos políticos, então aprendemos muito com Recife", afirma.
Outra diferença apontada por Koop é a presença de um sistema de delegação direta, em que delegados vindos da comunidade são votados para representar os interesses dos cidadãos. "Essa é uma participação muito mais forte do que a que conhecemos nos municípios alemães e algo que obviamente pode servir de exemplo por aqui."
Merkel também afirmou que a Alemanha pode aprender com o exemplo de Recife. "As possibilidades de maior participação certamente não estão sendo aproveitadas o suficiente", disse.
JOVEM DEMAIS PARA MORRER
Edmilson Lopes Júnior
De Natal (RN)
A sistematização das bases de dados do Subsistema de Informação sobre Mortalidade em relatórios anuais é uma valiosa contribuição à cidadania no Brasil. Os "mapas da violência", como esses documentos são intitulados, são produzidos, com muita competência, por Julio Jacobo Waiselfisz. Disponibilizados na íntegra na internet, esse material se constitui em uma importante ferramenta para a reflexão e o planejamento na área de segurança pública.
O "Mapa da violência 2011: Os jovens do Brasil", lançado em março e disponibilizado na internet, aporta informações gravíssimas sobre a evolução das taxas de homicídios no Nordeste. Na região, essa taxa, quando medida para cada 100 mil habitantes, passou de 18,5 para 32,1, o que se traduz em um crescimento, em dez anos, de nada menos que 73,9%. Essa nova taxa traduz um crescimento dos homicídios em todos os estados da região, com exceção de Pernambuco, onde, em que pese uma alvissareira diminuição de 13,8, ainda se convive com 50,7 homicídios para cada 100 mil habitantes. No Rio Grande do Norte, em 1998, essa taxa era de 8,5 homicídios para cada 100 mil habitantes. Dez anos depois, a taxa pulou para 23,2, expressando um crescimento de 172,8%.
Julio Jacobo Waiselfisz desagregou os dados e procurou apreender a evolução dos homicídios na população de 15 a 24 anos. O quadro por ele apresentado indica que não é de todo exagerado se afirmar que está a ocorrer no Nordeste um genocídio silencioso da população jovem. Em 2008, enquanto no Brasil a taxa de homicídios nessa faixa de idade era de 52,9 para cada 100 mil, no Nordeste era de 63,8, o que nos coloca em primeiro lugar, no país, em assassinato de jovens.
A imprensa nacional, quando do lançamento do "Mapa", destacou a interiorização da violência. Há referentes para isso, mas se faz necessário uma análise mais cuidadosa no que diz respeito às capitais nordestinas. Enquanto no conjunto, a taxa de homicídios regrediu 17% no período da comparação (1998-2008), na nossa região, pelo contrário, tivemos um crescimento de 65,2%. Em Natal, essa situação se traduziu em aumento de 16,2 para 31,1 homicídios para cada 100 mil habitantes. Se levarmos em conta apenas os jovens, a capital do Rio Grande do Norte pulou de 32,2 para 73,2 homicídios para cada 100 mil habitantes.
O trabalho de Julio Jacobo Waiselfisz capta, com precisão, a dimensão étnica desse genocídio, trabalhando com dados mais restritos (2002, 2005 e 2008). Para ficarmos apenas no Rio Grande do Norte, aqui, enquanto a taxa de homicídios entre os jovens brancos passou de 7,9 para cada 100 mil habitantes, em 2002, para 12,8 em 2008, entre os negros, no mesmo período, saltou de 21,4 para 63,2.
No domingo passado, o matutino Novo Jornal publicou matéria escrita pelo jornalista Anderson Barbosa destacando dados coletados pela Subcoordenadoria de Estatística e Análise Criminal da Secretaria de Segurança Pública e Defesa Social do Rio Grande do Norte. Um dado mereceu destaque: 199 homicídios ocorreram em Natal nos cinco primeiros meses de 2011. Se esse padrão não for invertido, no final do ano, a capital do Rio Grande do Norte alcançará a nada invejável taxa de 50 homicídios para cada 100 mil habitantes, o que, de acordo com o "Mapa da Violência 2011", a colocaria entre as sete capitais mais violentas do país.
Você há de se perguntar sobre o impacto da revelação desses números na vida social e política local. A resposta, tão estarrecedora quanto os números revelados, é: quase nenhum. O que interessa aos atores políticos locais é saber quem irá ganhar com o desastre administrativo que tem sido a gestão da Prefeita Micarla de Souza (PV). E, para quem está de costas para a política provinciana, a conversa que vale a pena é aquela a respeito das chances do ABC, até aqui invicto na segundona, ascender à elite do futebol brasileiro em 2012.
Com professores em greve, as escolas, os únicos espaços que os jovens das zonas periféricas tinham para uma sociabilidade distinta daquela que os leva alimentar as estatísticas da morte, continuarão fechadas (já estão há dois meses). Em greve, em período idêntico, também estão os policiais civis, o que indica que aqueles homicídios não serão investigados. E o Governo do Estado, impossibilitado de conceder os aumentos reivindicados pelas categorias, já que se encontra nos limites de gastos impostos pela Lei de Responsabilidade Fiscal, joga todas as suas fichas na destruição do Estádio Machadão e construção de um novo elefante branco local, o Arena das Dunas. Tudo em nome da Copa.
Enquanto isso, em lugares distantes da periferia natalense, jovens negros continuarão sendo assassinados. Suas mortes anônimas serão atribuídas pelas autoridades locais, em entrevistas tão rituais quanto tediosas, ao tráfico de drogas. No Nordeste, uma geração de negros não será condenada a cem anos de solidão. Essa geração desaparecerá antes. Bem antes. Jovem demais.
Edmilson Lopes Júnior é professor de sociologia na Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN).
De Natal (RN)
A sistematização das bases de dados do Subsistema de Informação sobre Mortalidade em relatórios anuais é uma valiosa contribuição à cidadania no Brasil. Os "mapas da violência", como esses documentos são intitulados, são produzidos, com muita competência, por Julio Jacobo Waiselfisz. Disponibilizados na íntegra na internet, esse material se constitui em uma importante ferramenta para a reflexão e o planejamento na área de segurança pública.
O "Mapa da violência 2011: Os jovens do Brasil", lançado em março e disponibilizado na internet, aporta informações gravíssimas sobre a evolução das taxas de homicídios no Nordeste. Na região, essa taxa, quando medida para cada 100 mil habitantes, passou de 18,5 para 32,1, o que se traduz em um crescimento, em dez anos, de nada menos que 73,9%. Essa nova taxa traduz um crescimento dos homicídios em todos os estados da região, com exceção de Pernambuco, onde, em que pese uma alvissareira diminuição de 13,8, ainda se convive com 50,7 homicídios para cada 100 mil habitantes. No Rio Grande do Norte, em 1998, essa taxa era de 8,5 homicídios para cada 100 mil habitantes. Dez anos depois, a taxa pulou para 23,2, expressando um crescimento de 172,8%.
Julio Jacobo Waiselfisz desagregou os dados e procurou apreender a evolução dos homicídios na população de 15 a 24 anos. O quadro por ele apresentado indica que não é de todo exagerado se afirmar que está a ocorrer no Nordeste um genocídio silencioso da população jovem. Em 2008, enquanto no Brasil a taxa de homicídios nessa faixa de idade era de 52,9 para cada 100 mil, no Nordeste era de 63,8, o que nos coloca em primeiro lugar, no país, em assassinato de jovens.
A imprensa nacional, quando do lançamento do "Mapa", destacou a interiorização da violência. Há referentes para isso, mas se faz necessário uma análise mais cuidadosa no que diz respeito às capitais nordestinas. Enquanto no conjunto, a taxa de homicídios regrediu 17% no período da comparação (1998-2008), na nossa região, pelo contrário, tivemos um crescimento de 65,2%. Em Natal, essa situação se traduziu em aumento de 16,2 para 31,1 homicídios para cada 100 mil habitantes. Se levarmos em conta apenas os jovens, a capital do Rio Grande do Norte pulou de 32,2 para 73,2 homicídios para cada 100 mil habitantes.
O trabalho de Julio Jacobo Waiselfisz capta, com precisão, a dimensão étnica desse genocídio, trabalhando com dados mais restritos (2002, 2005 e 2008). Para ficarmos apenas no Rio Grande do Norte, aqui, enquanto a taxa de homicídios entre os jovens brancos passou de 7,9 para cada 100 mil habitantes, em 2002, para 12,8 em 2008, entre os negros, no mesmo período, saltou de 21,4 para 63,2.
No domingo passado, o matutino Novo Jornal publicou matéria escrita pelo jornalista Anderson Barbosa destacando dados coletados pela Subcoordenadoria de Estatística e Análise Criminal da Secretaria de Segurança Pública e Defesa Social do Rio Grande do Norte. Um dado mereceu destaque: 199 homicídios ocorreram em Natal nos cinco primeiros meses de 2011. Se esse padrão não for invertido, no final do ano, a capital do Rio Grande do Norte alcançará a nada invejável taxa de 50 homicídios para cada 100 mil habitantes, o que, de acordo com o "Mapa da Violência 2011", a colocaria entre as sete capitais mais violentas do país.
Você há de se perguntar sobre o impacto da revelação desses números na vida social e política local. A resposta, tão estarrecedora quanto os números revelados, é: quase nenhum. O que interessa aos atores políticos locais é saber quem irá ganhar com o desastre administrativo que tem sido a gestão da Prefeita Micarla de Souza (PV). E, para quem está de costas para a política provinciana, a conversa que vale a pena é aquela a respeito das chances do ABC, até aqui invicto na segundona, ascender à elite do futebol brasileiro em 2012.
Com professores em greve, as escolas, os únicos espaços que os jovens das zonas periféricas tinham para uma sociabilidade distinta daquela que os leva alimentar as estatísticas da morte, continuarão fechadas (já estão há dois meses). Em greve, em período idêntico, também estão os policiais civis, o que indica que aqueles homicídios não serão investigados. E o Governo do Estado, impossibilitado de conceder os aumentos reivindicados pelas categorias, já que se encontra nos limites de gastos impostos pela Lei de Responsabilidade Fiscal, joga todas as suas fichas na destruição do Estádio Machadão e construção de um novo elefante branco local, o Arena das Dunas. Tudo em nome da Copa.
Enquanto isso, em lugares distantes da periferia natalense, jovens negros continuarão sendo assassinados. Suas mortes anônimas serão atribuídas pelas autoridades locais, em entrevistas tão rituais quanto tediosas, ao tráfico de drogas. No Nordeste, uma geração de negros não será condenada a cem anos de solidão. Essa geração desaparecerá antes. Bem antes. Jovem demais.
Edmilson Lopes Júnior é professor de sociologia na Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN).
quinta-feira, 16 de junho de 2011
POR QUE O SOCIALISMO ?
(Leonardo Boff)
"As boas razões do socialismo a partir da moderna cosmologia"
Leonardo Boff
As boas razões do socialismo a partir da moderna cosmologia
Para esse debate sobre o socialismo tomo a liberdade de trazer uma reflexão, nascida dos meus estudos e preocupações dos últimos anos. Tenho feito um esforço considerável de tentar levar avante o discurso da Teologia da Libertação abrindo-a para outros campos da luta popular e da reflexão.
1. O grito dos pobres e o grito da Terra
Hoje não basta só ouvir o ‘grito dos pobres’. Na escuta desse grito nasceu nos anos sessenta, a Teologia da Libertação nos vários países da América Latina e em outros contextos mundiais de pobreza e injustiça. Não só os pobres gritam. A Terra também grita. As águas gritam. Os ecossistemas gritam. Porque são igualmente vítimas da mesma lógica do sistema do capital que explora as classes, os países, as nações e termina por devastar sistematicamente a inteira Natureza.
Estou profundamente convencido de que Teologia da Libertação só pode ser integral se incorporar dentro do seu discurso e de sua prática o resgate da Terra, que finalmente é o resgate da vida. Porque a Terra não é um planeta inerte. Não é um baú de recursos incalculáveis, mas finitos, como toda a modernidade técnico-científica a reduziu. A Terra é um organismo vivo, é a Pacha Mama de nossos indígenas, a Gaia dos cosmólogos contemporâneos. Numa perspectiva evolucionária, nós seres humanos, nascidos do húmus, somos a própria Terra que chegou a sentir, a pensar, a amar, a venerar e hoje a se alarmar. Terra e ser humano somos uma única realidade complexa, como bem o viram os astronautas lá da lua ou das suas naves espaciais.
A partir desta visão pude aprofundar algumas perspectivas, que gostaria aqui de, sucintamente, apresentar, como uma entre outras fontes de argumentação em favor do projeto socialista. O socialismo, tomado em sua intuição básica, representa a salvação da vida, do Planeta e do projeto planetário da espécie humana.
2. A lei fundamental do processo cosmogênico: a cooperação
Talvez o meu discurso soe inusitado e não convencional, mas estimo que pode significar uma entre outras maneiras atuais de refundar e dar as boas razões para uma opção socialista.
A primeira delas é a visão que vem da moderna cosmologia ou melhor das assim chamadas Ciências da Terra. Segundo esta visão, estamos todos dentro de um único processo cosmogênico, iniciado há 15 bilhões de anos e ainda em curso. A lei suprema que preside a evolução aberta é: tudo tem a ver com tudo em todos os pontos e em todos os momentos; tudo está inter-retro-relacionado e nada existe fora desta panrelacionalidade. Portanto, nada existe justaposto ou desarticulado. Senão que as coisas todas são de tal forma interconectadas que formam um incomensurável sistema.
Assim a vida é parte do processo da evolução da matéria (que nunca é inerte mas um centro de grande energia e interatividade) e a vida humana é parte da evolução da vida. As sociedades são momentos deste processo global e devem ser entendidas como expressão da lógica das relações universais. Temos, pois, a ver com uma visão realmente holística e sistêmica.
Ela se encontra bem formulada na física quântica de Niels Bohr e Werner Heisenberg, formuladores primeiros do novo paradigma de compreensão da realidade panrelacional. Para eles a centralidade se encontra precisamente na constatação de que a lei suprema do Universo e que permitiu que todos os seres chegassem até aqui é a cooperação, a solidaridade cósmica e a sinergia. Todos somos inter-dependentes. Cada um vive pelo outro, com o outro, para o outro, e todos formam a imensa rede de solidariedade cósmica. Essa realidade é tão forte que o Universo não conhece nenhum ser excluído, não conhece lixo, tudo recicla, tudo transforma e tudo incorpora. Mesmo a visão de Darwin sobre a origem das espécies pela seleção natural e da vitória do mais forte, se inscreve dentro da lei universal da solidariedade. Alguém é mais forte porque tem mais capacidade de relações e assim de contar com a cooperação dos outros. Não basta ser simplesmente forte como os dinossauros. Depois de uma catástrofe ecológica sem precedentes que dizimou mais da metade do capital biótico do Planeta, eles não conseguiram se relacionar com a nova situação e foram condenados a desaparecer.
Não é difícil de se perceber que o Capitalismo vai contra a lei básica do universo, porque ele não é cooperativo, ele é só competitivo. Ele representa a "barbárie", a destruição dos laços da convivialidade, das interdependências e das inclusões. Ele é individualista, ele é excludente. Ele reafirma e magnifica o indivíduo, do eu à custa dos laços do nós e da socialidade humana.
O socialismo, ao invés, se inscreve na lógica global das coisas, é sua expressão histórico-social. O que a natureza prescreve em seu dinamismo interno, ele transforma num projeto político, numa visão consciente do mundo e numa ética de solidariedade, cooperação e inclusão.
3. O ser humano como um ser falante e societário
O segundo argumento se deriva da antropogênese, vale dizer, do processo dentro do qual surgiu o ser humano, como um ser diferente de seus semelhantes símios superiores como os chimpanzés, gorilas e orangotangos. Na verdade, a carga genética dos seres humanos e dos chimpanzés é quase idêntica; há uma diferença apenas de 2%. Mas nesses 2% reside toda a diferença.
Em que consiste esta diferença? No fato singular da socialidade, no fato de os seres humanos serem seres de cooperação e de convivialidade. Os chimpanzés possuem também vida societária. Mas diferentemente dos seres humanos, ela se orienta pela lógica da dominação, da hierarquização e do assujeitamento do outro. Por isso as relações se apresentam extremamente dominadoras.
Ao surgir o ser humano a partir de um primata comum, base para os símios superiores e os humanos, rompe-se essa lógica. Não sabemos exatamente a data, mas seguramente por volta de três milhões de anos atrás. As pesquisas recentes, de 1977, levam às ossadas de uma mulher, Lucy, na África Oriental, na região de Afar na Etiópia.
A lógica muda absolutamente. Ao invés da competitividade feroz e da vontade de subjugação entra a funcionar a cooperação. Então ao nível humano, aqueles menos de 2%, dos ácidos nucléicos e das bases fosfatadas, que fundam o humano enquanto humano, se encontram nas relações de cooperação. Esses nossos ancestrais humanóides saiam para caçar, traziam os alimentos, e os repartiam socialmente entre eles. Não é como os primatas superiores que cada um come para si. Traziam e distribuíam solidariamente entre eles. Desses laços de solidariedade e como mamíferos superiores desenvolveram mais as relações mãe e filho. O calor da proximidade fez surgir o enternecimento e a relação do cuidado para com um do outro.
Tal diferença se mostra na mão. A mão do chimpanzé e do ser humano são diferentes. A mão do ser humano se estende, se adapta ao corpo e é apta para a carícia, ao passo que aquela dos símios superiores não se estende e é antes adaptada para pegar e segurar.
Foi essa base de solidariedade e partilha que serviu de ambiente para o surgimento da linguagem. Ela supõe um animal amoroso e terno. Na linguagem reside o diferencial humano. E a linguagem, singular no ser humano, é fundamentalmente um fenômeno social. Nessa relação social um não precisa justificar sua presença diante do outro porque sabe que é acolhido, nunca é simplesmente tratado como um inimigo, antes como companheiro, como semelhante, como irmão, como sócio na aventura da existência.
Essa interpretação da antropogênese é recorrente em grandes nomes das ciências da vida como os conhecidos cientistas chilenos Humberto Maturana e Francisco Varela ou Fritjof Capra, Christian de Duve e outros.
Como se depreende, o socialismo emerge do próprio processo da antropogênese. Ele expressa uma lógica de milhões de anos de convivialidade e de laços de cooperação, apesar de todos os retrocessos e estrangulamentos que a história registra. Mas o que levou a história avante e chegou até nós é a capacidade do ser humano de fazer e refazer os laços de convivência, de nunca colocar a guerra e a exclusão do outro como projeto civilizatório, mas como desvio dele a ser evitado, limitado, superado ou integrado numa síntese superior humanizadora.
O capitalismo representa a sobrevivência da política do chimpanzé, no dizer de Humberto Maturana (veja seu mais recente livro, Formação humana e capacitação, Vozes, Petrópolis 2000), vale dizer, daquela carga genética que temos em comum com os chimpanzés e que nos faz também, em parte chimpanzés, parte que ainda não inaugurou o reino do humano com sua força socializadora e cooperativa.
Essa política chimpanzé, atualizada pelo capitalismo é caracterizada, segundo esse biólogo chileno, pela apropriação, pela concorrência, pela desconfiança, pelo controle, pelo asujeitamento, pela dominação, finalmente pela lógica da guerra. Ela não ingressou na dimensão humana do humano, que é a dimensão da colaboração, da convivialidade, do cuidado, melhor expressa no projeto socialista, desde os primórdios de sua formulação entre os utopistas cristãos.
Eis uma boa razão para querermos ser socialistas, por que queremos ser humanos, seres de linguagem comunicativa, seres de relação e de solidariedade irrestrita.
Neste sentido, estamos ainda na ante-sala de nossa verdadeira humanidade. Penando e sobrevivendo nos quadros do modo de produção capitalista, mundialmente integrado e invadidos pela cultura do capital, não logramos ainda inaugurar o novo milênio, com um nova relação de inclusão de toda a humanidade. Dois terços dos humanos vivem em níveis de crueldade e sem piedade, vítimas da voracidade acumuladora da lógica do capital. Só o socialismo, como expressão de cooperação igualitária e de convivência pacífica com os diferentes, poderá criar o espaço para aflorarmos como humanos verdadeiramente humanos.
4. Se não socializarmos não sobreviveremos
O terceiro argumento em favor de uma opção sócio-política socialista nos vem da reflexão ecológica. Ela hoje ganhou dimensões globais. Todos os relatórios sérios sobre o estado da Terra nos alarmam: a seguir a lógica depredadora e consumista do sistema do capital vamos ao encontro do pior, vamos ao encontro da não sustentabilidade de nosso projeto civilizatório e de um estresse fantástico da biosfera, com a provável dizimação de incontáveis espécies e seus representantes. Não é impossível que a própria espécie homo sapiens e demens seja poderosamente ameaçada.
O que se constata de forma irrefutável é que os recursos do sistema-Terra são limitados e em alguns casos extremamente escassos. Nem falo do petróleo, sangue da máquina produtivista mundial, mas de algo mais fundamental para todo o sistema da vida e da comunidade-de-vida: a água potável.
De toda a água do planeta (2/3 são compostos por água) apenas 3% é constituído por água doce. Destes 3% menos de 1% é acessível ao uso humano, pois o restante está em geleiras ou em regiões profundas da Terra. Devido ao consumo irresponsável de água doce no processo produtivo, na agroindústria e com maciça utilização de tóxicos e pesticidas, a água não tem tempo de refazer seus nutrientes e se torna salobra.
A ONU em sucessivas reuniões mundiais de estudo e de busca de soluções globais alertou para o risco que enfrentamos imediatamente. Segundo os mais recentes relatórios (o último de Haia de março-abril de 2000) nos próximos anos haverá guerras de grande devastação em várias regiões do mundo para garantir acesso à fonte de água potável. Mais que o petróleo, o urânio e outros materiais, é a água o bem mais escasso da natureza. Quem controlar as águas controlará os recursos da vida, pois a água está intimamente ligada à vida em toda as suas formas.
Bem como a água, outros recursos energéticos são fundamentais para garantir um futuro de vida para todos os humanos e outros seres da comunidade de vida. Todos os bens necessários à vida pertencem ao patrimônio da biosfera e ao patrimônio comum da humanidade.
Se não socializarmos esses recursos escassos não garantiremos um futuro comum para a vida, para a humanidade e para a Terra. Não se trata mais de socialismo em termos ideológicos e, na sua expressão melhor, em termos políticos e alternativos. Trata-se de socialismo como forma de sobrevivência. Ou socializamos ou vamos ao encontro de um impasse vital.
Temos que planificar o uso racional destes recursos raros em benefício de todos os seres vivos, humanos e não humanos. O planejamento é uma criação do socialismo e não do capitalismo. Capitalismo incorporou o planejamento para racionalizar sua produção e garantir melhor seus lucros, mas não para repartir os bens escassos. Então, nós temos que planificar para socializar os recursos escassos da Terra, a começar pelos mais fundamentais, aqueles que garantem o substrato físico-químico de nossa sobrevivência, como água, alimentação básica, moradia, trabalho, lazer e educação (que nos permite a comunicação humana mínima). Desta vez não haverá uma Arca de Noé que salve alguns e deixe perecer os outros. Ou nos salvamos todos ou perecemos todos.
O capitalismo não oferece nenhum sinal de que queira construir uma Arca de Noé para todos. Pelo contrário, ele se encontra dentro de um Titanic que se afunda por razões da destrutividade do próprio capitalismo e seus agentes, insensíveis, cegos e suicidas, continuam fazendo negócios. Poderão levar a Terra e a humanidade a um estresse jamais visto na história conhecida da Terra ou semelhante àquelas grandes dizimações em eras ancestrais, que colocaram sob imensos riscos o sistema da vida. Mas nessas eras os seres humanos ainda não haviam imergido no processo de evolução.
5. O socialismo utópico se abraça com o socialismo histórico
Nos primórdios da formulação do projeto socialista houve um debate clássico, protagonizado por Karl Marx, entre o Socialismo utópico, projetado pelos pais fundadores do Socialismo e o Socialismo Científico, inaugurado por ele, Marx e por Engels. Marx submeteu a uma crítica dura o socialismo utópico por causa de sua ineficácia não obstante seu alto poder mobilizador. Em contraposição lutou pelo socialismo chamado por ele de cientifico, base para um projeto político consistente e transformador da sociedade capitalista.
Nós conhecemos os impasses desta pretensão, especialmente na expressão do assim chamado socialismo real do Leste europeu. Mas hoje, com a distância do tempo e com o medir as boas razões de um outro socialismo, sentimos a necessidade e a utilidade de resgatarmos as duas tradições. Importa apresentar o socialismo utópico como a grande utopia da humanidade, quiçá, a mais generosa até hoje formulada. Ela é fundamental para inspirar práticas de solidariedade, cooperação e sinergia em todos os campos, particularmente naqueles onde se trata de salvaguardar a vida e o planeta Terra, a única casa comum que temos para morar.
É urgente fundar o pacto social global que insira todas as tribos da Terra, pacto que inclua a Natureza e a Terra como sujeitos de direitos a serem respeitados e cultivados. Os formuladores do pacto social subjacente às atuais sociedades: Russeau, Locke e mesmo Kant, jamais incluíram em suas reflexões a natureza e a Terra. Davam por descontado que elas tinham uma existência garantida. Elas garantiam a vida em geral e as bases para a vida social. Ora, hoje a situação se encontra mudada. A natureza e a Terra não têm garantido seu futuro. Dependem das práticas humanas: ou de destruição ou preservação. Não devemos esquecer que, insanamente, inventamos o princípio de auto-destruição que, por sua vez, provoca a instauração do princípio de co-responsabilidade.
No novo pacto social global, expressão dessa co-responsabilidade, somos urgidos a incluir a natureza e a Terra com sua subjetividade. Elas compõem o novo cidadão. Plantas, animais, rios, paisagens, montanhas entram a formar nossa sociedade ecologizada. Como dizia Michel Serres, notável pensador francês da nova situação da humanidade: A Declaração dos Direitos Humanos tinha a razão em proclamar que cada pessoa humana tem direitos. Mas tinha um defeito, o de pensar que somente os seres humanos têm direitos. Os demais seres da natureza e da criação têm também direitos de existir, de serem respeitados e de conviverem na comunidade terrenal e cósmica. Todos precisamos uns dos outros e somos inter-retro-dependentes. Mais ainda; devemos nos comportar como os garantidores e os guardiães destes direitos ecológicos de toda a criação.
O socialismo utópico sonha com um planeta Terra, integrando todos os seres na imensa comunidade terrenal e biótica. Mas importa passar da utopia para a história. E então resgatar a tradição do socialismo histórico que formula mediações concretas para sua implementação na política, na economia, na educação, nos sistemas de poder, nas comunidades, nas famílias e em todos os relacionamentos com a natureza.
Então o socialismo realizará o sonho de seus fundadores, especialmente de Rosa Luxemburgo e de Antônio Gramsci, de ser a concretização da democracia integral, democracia humana e sócio-cósmica.
Esse socialismo é co-natural ao ser humano, como ser de amorosidade, de cooperação, de sinergia, de solidariedade, porque é nesse tipo de relações que se inscreve a singularidade do ser Humano, enquanto humano em comunhão e distinto dos demais seres.
Hoje, face aos desafios que a humanidade enfrenta, desafios de vida e de morte, importa que as duas formas de se pensar e viver o socialismo se abracem e se dêem as mãos. A tarefa é imensa, verdadeiramente messiânica, salvar a vida, salvaguardar a Terra e garantir o futuro do projeto humano.
* Texto extraído da Revista América Libre, n. 18, Buenos Aires, Argentina, julho de 2001, p. 12-16. Referente à sua exposição na 1ª mesa sobre Por que o Socialismo?, no VI Seminário Internacional da Revista, ocorrido nos dias 4 a 6 de dezembro.
"As boas razões do socialismo a partir da moderna cosmologia"
Leonardo Boff
As boas razões do socialismo a partir da moderna cosmologia
Para esse debate sobre o socialismo tomo a liberdade de trazer uma reflexão, nascida dos meus estudos e preocupações dos últimos anos. Tenho feito um esforço considerável de tentar levar avante o discurso da Teologia da Libertação abrindo-a para outros campos da luta popular e da reflexão.
1. O grito dos pobres e o grito da Terra
Hoje não basta só ouvir o ‘grito dos pobres’. Na escuta desse grito nasceu nos anos sessenta, a Teologia da Libertação nos vários países da América Latina e em outros contextos mundiais de pobreza e injustiça. Não só os pobres gritam. A Terra também grita. As águas gritam. Os ecossistemas gritam. Porque são igualmente vítimas da mesma lógica do sistema do capital que explora as classes, os países, as nações e termina por devastar sistematicamente a inteira Natureza.
Estou profundamente convencido de que Teologia da Libertação só pode ser integral se incorporar dentro do seu discurso e de sua prática o resgate da Terra, que finalmente é o resgate da vida. Porque a Terra não é um planeta inerte. Não é um baú de recursos incalculáveis, mas finitos, como toda a modernidade técnico-científica a reduziu. A Terra é um organismo vivo, é a Pacha Mama de nossos indígenas, a Gaia dos cosmólogos contemporâneos. Numa perspectiva evolucionária, nós seres humanos, nascidos do húmus, somos a própria Terra que chegou a sentir, a pensar, a amar, a venerar e hoje a se alarmar. Terra e ser humano somos uma única realidade complexa, como bem o viram os astronautas lá da lua ou das suas naves espaciais.
A partir desta visão pude aprofundar algumas perspectivas, que gostaria aqui de, sucintamente, apresentar, como uma entre outras fontes de argumentação em favor do projeto socialista. O socialismo, tomado em sua intuição básica, representa a salvação da vida, do Planeta e do projeto planetário da espécie humana.
2. A lei fundamental do processo cosmogênico: a cooperação
Talvez o meu discurso soe inusitado e não convencional, mas estimo que pode significar uma entre outras maneiras atuais de refundar e dar as boas razões para uma opção socialista.
A primeira delas é a visão que vem da moderna cosmologia ou melhor das assim chamadas Ciências da Terra. Segundo esta visão, estamos todos dentro de um único processo cosmogênico, iniciado há 15 bilhões de anos e ainda em curso. A lei suprema que preside a evolução aberta é: tudo tem a ver com tudo em todos os pontos e em todos os momentos; tudo está inter-retro-relacionado e nada existe fora desta panrelacionalidade. Portanto, nada existe justaposto ou desarticulado. Senão que as coisas todas são de tal forma interconectadas que formam um incomensurável sistema.
Assim a vida é parte do processo da evolução da matéria (que nunca é inerte mas um centro de grande energia e interatividade) e a vida humana é parte da evolução da vida. As sociedades são momentos deste processo global e devem ser entendidas como expressão da lógica das relações universais. Temos, pois, a ver com uma visão realmente holística e sistêmica.
Ela se encontra bem formulada na física quântica de Niels Bohr e Werner Heisenberg, formuladores primeiros do novo paradigma de compreensão da realidade panrelacional. Para eles a centralidade se encontra precisamente na constatação de que a lei suprema do Universo e que permitiu que todos os seres chegassem até aqui é a cooperação, a solidaridade cósmica e a sinergia. Todos somos inter-dependentes. Cada um vive pelo outro, com o outro, para o outro, e todos formam a imensa rede de solidariedade cósmica. Essa realidade é tão forte que o Universo não conhece nenhum ser excluído, não conhece lixo, tudo recicla, tudo transforma e tudo incorpora. Mesmo a visão de Darwin sobre a origem das espécies pela seleção natural e da vitória do mais forte, se inscreve dentro da lei universal da solidariedade. Alguém é mais forte porque tem mais capacidade de relações e assim de contar com a cooperação dos outros. Não basta ser simplesmente forte como os dinossauros. Depois de uma catástrofe ecológica sem precedentes que dizimou mais da metade do capital biótico do Planeta, eles não conseguiram se relacionar com a nova situação e foram condenados a desaparecer.
Não é difícil de se perceber que o Capitalismo vai contra a lei básica do universo, porque ele não é cooperativo, ele é só competitivo. Ele representa a "barbárie", a destruição dos laços da convivialidade, das interdependências e das inclusões. Ele é individualista, ele é excludente. Ele reafirma e magnifica o indivíduo, do eu à custa dos laços do nós e da socialidade humana.
O socialismo, ao invés, se inscreve na lógica global das coisas, é sua expressão histórico-social. O que a natureza prescreve em seu dinamismo interno, ele transforma num projeto político, numa visão consciente do mundo e numa ética de solidariedade, cooperação e inclusão.
3. O ser humano como um ser falante e societário
O segundo argumento se deriva da antropogênese, vale dizer, do processo dentro do qual surgiu o ser humano, como um ser diferente de seus semelhantes símios superiores como os chimpanzés, gorilas e orangotangos. Na verdade, a carga genética dos seres humanos e dos chimpanzés é quase idêntica; há uma diferença apenas de 2%. Mas nesses 2% reside toda a diferença.
Em que consiste esta diferença? No fato singular da socialidade, no fato de os seres humanos serem seres de cooperação e de convivialidade. Os chimpanzés possuem também vida societária. Mas diferentemente dos seres humanos, ela se orienta pela lógica da dominação, da hierarquização e do assujeitamento do outro. Por isso as relações se apresentam extremamente dominadoras.
Ao surgir o ser humano a partir de um primata comum, base para os símios superiores e os humanos, rompe-se essa lógica. Não sabemos exatamente a data, mas seguramente por volta de três milhões de anos atrás. As pesquisas recentes, de 1977, levam às ossadas de uma mulher, Lucy, na África Oriental, na região de Afar na Etiópia.
A lógica muda absolutamente. Ao invés da competitividade feroz e da vontade de subjugação entra a funcionar a cooperação. Então ao nível humano, aqueles menos de 2%, dos ácidos nucléicos e das bases fosfatadas, que fundam o humano enquanto humano, se encontram nas relações de cooperação. Esses nossos ancestrais humanóides saiam para caçar, traziam os alimentos, e os repartiam socialmente entre eles. Não é como os primatas superiores que cada um come para si. Traziam e distribuíam solidariamente entre eles. Desses laços de solidariedade e como mamíferos superiores desenvolveram mais as relações mãe e filho. O calor da proximidade fez surgir o enternecimento e a relação do cuidado para com um do outro.
Tal diferença se mostra na mão. A mão do chimpanzé e do ser humano são diferentes. A mão do ser humano se estende, se adapta ao corpo e é apta para a carícia, ao passo que aquela dos símios superiores não se estende e é antes adaptada para pegar e segurar.
Foi essa base de solidariedade e partilha que serviu de ambiente para o surgimento da linguagem. Ela supõe um animal amoroso e terno. Na linguagem reside o diferencial humano. E a linguagem, singular no ser humano, é fundamentalmente um fenômeno social. Nessa relação social um não precisa justificar sua presença diante do outro porque sabe que é acolhido, nunca é simplesmente tratado como um inimigo, antes como companheiro, como semelhante, como irmão, como sócio na aventura da existência.
Essa interpretação da antropogênese é recorrente em grandes nomes das ciências da vida como os conhecidos cientistas chilenos Humberto Maturana e Francisco Varela ou Fritjof Capra, Christian de Duve e outros.
Como se depreende, o socialismo emerge do próprio processo da antropogênese. Ele expressa uma lógica de milhões de anos de convivialidade e de laços de cooperação, apesar de todos os retrocessos e estrangulamentos que a história registra. Mas o que levou a história avante e chegou até nós é a capacidade do ser humano de fazer e refazer os laços de convivência, de nunca colocar a guerra e a exclusão do outro como projeto civilizatório, mas como desvio dele a ser evitado, limitado, superado ou integrado numa síntese superior humanizadora.
O capitalismo representa a sobrevivência da política do chimpanzé, no dizer de Humberto Maturana (veja seu mais recente livro, Formação humana e capacitação, Vozes, Petrópolis 2000), vale dizer, daquela carga genética que temos em comum com os chimpanzés e que nos faz também, em parte chimpanzés, parte que ainda não inaugurou o reino do humano com sua força socializadora e cooperativa.
Essa política chimpanzé, atualizada pelo capitalismo é caracterizada, segundo esse biólogo chileno, pela apropriação, pela concorrência, pela desconfiança, pelo controle, pelo asujeitamento, pela dominação, finalmente pela lógica da guerra. Ela não ingressou na dimensão humana do humano, que é a dimensão da colaboração, da convivialidade, do cuidado, melhor expressa no projeto socialista, desde os primórdios de sua formulação entre os utopistas cristãos.
Eis uma boa razão para querermos ser socialistas, por que queremos ser humanos, seres de linguagem comunicativa, seres de relação e de solidariedade irrestrita.
Neste sentido, estamos ainda na ante-sala de nossa verdadeira humanidade. Penando e sobrevivendo nos quadros do modo de produção capitalista, mundialmente integrado e invadidos pela cultura do capital, não logramos ainda inaugurar o novo milênio, com um nova relação de inclusão de toda a humanidade. Dois terços dos humanos vivem em níveis de crueldade e sem piedade, vítimas da voracidade acumuladora da lógica do capital. Só o socialismo, como expressão de cooperação igualitária e de convivência pacífica com os diferentes, poderá criar o espaço para aflorarmos como humanos verdadeiramente humanos.
4. Se não socializarmos não sobreviveremos
O terceiro argumento em favor de uma opção sócio-política socialista nos vem da reflexão ecológica. Ela hoje ganhou dimensões globais. Todos os relatórios sérios sobre o estado da Terra nos alarmam: a seguir a lógica depredadora e consumista do sistema do capital vamos ao encontro do pior, vamos ao encontro da não sustentabilidade de nosso projeto civilizatório e de um estresse fantástico da biosfera, com a provável dizimação de incontáveis espécies e seus representantes. Não é impossível que a própria espécie homo sapiens e demens seja poderosamente ameaçada.
O que se constata de forma irrefutável é que os recursos do sistema-Terra são limitados e em alguns casos extremamente escassos. Nem falo do petróleo, sangue da máquina produtivista mundial, mas de algo mais fundamental para todo o sistema da vida e da comunidade-de-vida: a água potável.
De toda a água do planeta (2/3 são compostos por água) apenas 3% é constituído por água doce. Destes 3% menos de 1% é acessível ao uso humano, pois o restante está em geleiras ou em regiões profundas da Terra. Devido ao consumo irresponsável de água doce no processo produtivo, na agroindústria e com maciça utilização de tóxicos e pesticidas, a água não tem tempo de refazer seus nutrientes e se torna salobra.
A ONU em sucessivas reuniões mundiais de estudo e de busca de soluções globais alertou para o risco que enfrentamos imediatamente. Segundo os mais recentes relatórios (o último de Haia de março-abril de 2000) nos próximos anos haverá guerras de grande devastação em várias regiões do mundo para garantir acesso à fonte de água potável. Mais que o petróleo, o urânio e outros materiais, é a água o bem mais escasso da natureza. Quem controlar as águas controlará os recursos da vida, pois a água está intimamente ligada à vida em toda as suas formas.
Bem como a água, outros recursos energéticos são fundamentais para garantir um futuro de vida para todos os humanos e outros seres da comunidade de vida. Todos os bens necessários à vida pertencem ao patrimônio da biosfera e ao patrimônio comum da humanidade.
Se não socializarmos esses recursos escassos não garantiremos um futuro comum para a vida, para a humanidade e para a Terra. Não se trata mais de socialismo em termos ideológicos e, na sua expressão melhor, em termos políticos e alternativos. Trata-se de socialismo como forma de sobrevivência. Ou socializamos ou vamos ao encontro de um impasse vital.
Temos que planificar o uso racional destes recursos raros em benefício de todos os seres vivos, humanos e não humanos. O planejamento é uma criação do socialismo e não do capitalismo. Capitalismo incorporou o planejamento para racionalizar sua produção e garantir melhor seus lucros, mas não para repartir os bens escassos. Então, nós temos que planificar para socializar os recursos escassos da Terra, a começar pelos mais fundamentais, aqueles que garantem o substrato físico-químico de nossa sobrevivência, como água, alimentação básica, moradia, trabalho, lazer e educação (que nos permite a comunicação humana mínima). Desta vez não haverá uma Arca de Noé que salve alguns e deixe perecer os outros. Ou nos salvamos todos ou perecemos todos.
O capitalismo não oferece nenhum sinal de que queira construir uma Arca de Noé para todos. Pelo contrário, ele se encontra dentro de um Titanic que se afunda por razões da destrutividade do próprio capitalismo e seus agentes, insensíveis, cegos e suicidas, continuam fazendo negócios. Poderão levar a Terra e a humanidade a um estresse jamais visto na história conhecida da Terra ou semelhante àquelas grandes dizimações em eras ancestrais, que colocaram sob imensos riscos o sistema da vida. Mas nessas eras os seres humanos ainda não haviam imergido no processo de evolução.
5. O socialismo utópico se abraça com o socialismo histórico
Nos primórdios da formulação do projeto socialista houve um debate clássico, protagonizado por Karl Marx, entre o Socialismo utópico, projetado pelos pais fundadores do Socialismo e o Socialismo Científico, inaugurado por ele, Marx e por Engels. Marx submeteu a uma crítica dura o socialismo utópico por causa de sua ineficácia não obstante seu alto poder mobilizador. Em contraposição lutou pelo socialismo chamado por ele de cientifico, base para um projeto político consistente e transformador da sociedade capitalista.
Nós conhecemos os impasses desta pretensão, especialmente na expressão do assim chamado socialismo real do Leste europeu. Mas hoje, com a distância do tempo e com o medir as boas razões de um outro socialismo, sentimos a necessidade e a utilidade de resgatarmos as duas tradições. Importa apresentar o socialismo utópico como a grande utopia da humanidade, quiçá, a mais generosa até hoje formulada. Ela é fundamental para inspirar práticas de solidariedade, cooperação e sinergia em todos os campos, particularmente naqueles onde se trata de salvaguardar a vida e o planeta Terra, a única casa comum que temos para morar.
É urgente fundar o pacto social global que insira todas as tribos da Terra, pacto que inclua a Natureza e a Terra como sujeitos de direitos a serem respeitados e cultivados. Os formuladores do pacto social subjacente às atuais sociedades: Russeau, Locke e mesmo Kant, jamais incluíram em suas reflexões a natureza e a Terra. Davam por descontado que elas tinham uma existência garantida. Elas garantiam a vida em geral e as bases para a vida social. Ora, hoje a situação se encontra mudada. A natureza e a Terra não têm garantido seu futuro. Dependem das práticas humanas: ou de destruição ou preservação. Não devemos esquecer que, insanamente, inventamos o princípio de auto-destruição que, por sua vez, provoca a instauração do princípio de co-responsabilidade.
No novo pacto social global, expressão dessa co-responsabilidade, somos urgidos a incluir a natureza e a Terra com sua subjetividade. Elas compõem o novo cidadão. Plantas, animais, rios, paisagens, montanhas entram a formar nossa sociedade ecologizada. Como dizia Michel Serres, notável pensador francês da nova situação da humanidade: A Declaração dos Direitos Humanos tinha a razão em proclamar que cada pessoa humana tem direitos. Mas tinha um defeito, o de pensar que somente os seres humanos têm direitos. Os demais seres da natureza e da criação têm também direitos de existir, de serem respeitados e de conviverem na comunidade terrenal e cósmica. Todos precisamos uns dos outros e somos inter-retro-dependentes. Mais ainda; devemos nos comportar como os garantidores e os guardiães destes direitos ecológicos de toda a criação.
O socialismo utópico sonha com um planeta Terra, integrando todos os seres na imensa comunidade terrenal e biótica. Mas importa passar da utopia para a história. E então resgatar a tradição do socialismo histórico que formula mediações concretas para sua implementação na política, na economia, na educação, nos sistemas de poder, nas comunidades, nas famílias e em todos os relacionamentos com a natureza.
Então o socialismo realizará o sonho de seus fundadores, especialmente de Rosa Luxemburgo e de Antônio Gramsci, de ser a concretização da democracia integral, democracia humana e sócio-cósmica.
Esse socialismo é co-natural ao ser humano, como ser de amorosidade, de cooperação, de sinergia, de solidariedade, porque é nesse tipo de relações que se inscreve a singularidade do ser Humano, enquanto humano em comunhão e distinto dos demais seres.
Hoje, face aos desafios que a humanidade enfrenta, desafios de vida e de morte, importa que as duas formas de se pensar e viver o socialismo se abracem e se dêem as mãos. A tarefa é imensa, verdadeiramente messiânica, salvar a vida, salvaguardar a Terra e garantir o futuro do projeto humano.
* Texto extraído da Revista América Libre, n. 18, Buenos Aires, Argentina, julho de 2001, p. 12-16. Referente à sua exposição na 1ª mesa sobre Por que o Socialismo?, no VI Seminário Internacional da Revista, ocorrido nos dias 4 a 6 de dezembro.
quarta-feira, 1 de junho de 2011
QUEM QUER SER PROFESSOR?
Baixos salários, desvalorização e falta de plano de carreira afastam as novas gerações da profissão docente. Mas há quem não desista.
Tory Oliveira
Você é louca!” “É tão inteligente, sempre gostou de estudar, por que desperdiçar tudo com essa carreira?” Ligia Reis (foto a dir.), de 23 anos, ouviu essas e outras exclamações quando decidiu prestar vestibular para Letras, alimentada pela ideia de se tornar professora na Educação Básica. Nas conversas com colegas mais velhos de estágio, no curso de História, Isaías de Carvalho, de 29 anos, também era recebido com comentários jocosos. “Vai ser professor? Que coragem!” Estudante de um colégio de classe média alta em São Paulo, Ana Sordi (foto a esq.), de 18 anos, foi a única estudante de seu ano a prestar vestibular para Pedagogia. E também ouviu: “Você vai ser pobre, não vai ter dinheiro”. Apesar das críticas, conselhos e reclamações, Ligia, Isaías e Ana não desistiram. No quinto ano de Letras na USP, Ligia hoje trabalha como professora substituta em uma escola pública de São Paulo. Formado em História pela Unesp e no quarto ano de Pedagogia, Isaías é professor na rede estadual na cidade de São Paulo. No segundo ano de Pedagogia na USP, Ana acompanha duas vezes por semana os alunos do segundo ano na Escola Viva.
Quando os três falam da profissão, é com entusiasmo. Pelo que indicam as estatísticas, Ligia, Isaías e Ana fazem parte de uma minoria. Historicamente pressionados por salários baixos, condições adversas de trabalho e sem um plano de carreira efetivo, cursos de Pedagogia e Licenciatura – como Português ou Matemática – são cada vez menos procurados por jovens recém-saídos do Ensino Médio. Em sete anos, nos cursos de formação em Educação Básica, o núsmero de matriculados caiu 58%, ao passar de 101.276 para 42.441.
Atrair novas gerações para a carreira de professor está se firmando como um dos maiores desafios a ser enfrentado pela Educação no Brasil. Não por acaso, a valorização do educador é uma das principais metas do novo Plano Nacional de Educação. Uma olhadela na história da educação mostra que não é de hoje que a figura do professor é institucionalmente desvalorizada. “Há textos de governadores de província do século XIX que já falavam que ia ser professor aquele que não sabia ser outra coisa”, explica Bernardete Gatti, da Fundação Carlos Chagas, coordenadora da pesquisa Professores do Brasil: Impasses e desafios. No entanto, entre as décadas de 1930 e 1950, a figura do professor passou a ter um valor social maior. Tal perspectiva, porém, modificou-se novamente a partir da expansão do sistema de ensino no Brasil, que deixou de atender apenas a elite e passou a buscar uma universalização da educação. Desordenada, a expansão acabou aligeirando a formação do professor, recrutando muitos docentes leigos e achatando brutalmente os salários da categoria como um todo.
Raio X
Encomendada pela Unesco, a pesquisa Professores do Brasil: Impasses e desafios revelou que, em geral, o jovem que procura a carreira de professor hoje no Brasil é oriundo das classes mais baixas e fez sua formação na escolas públicas. Segundo dados do questionário socioeconômico do Enade de 2005, 68,4% dos estudantes de Pedagogia e de Licenciatura cursaram todo o Ensino Médio no setor público. “De um lado, você tem uma -implicação muito boa. São jovens que estão procurando ascensão social num projeto de vida e numa profissão que exige uma formação superior. Então, eles vêm com uma motivação muito grande.”
É o caso de Fernando Cardoso, de 26 anos. Professor auxiliar do quinto ano do Ensino Fundamental da Escola Viva, Fernando é a primeira pessoa de sua família a completar o Ensino Superior. Sua primeira graduação, em Educação Física, foi bastante comemorada pela família de Mogi-Guaçu, interior de São Paulo. O mesmo aconteceu quando ele resolveu cursar a segunda faculdade, de Pedagogia.
Entretanto, pondera Bernardete, grande parte desse contingente também chega ao Ensino Superior com certa “defasagem” em sua formação. A pesquisadora cita os exemplos do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), que revela resultados muito baixos, especialmente no que diz respeito ao domínio de Língua Portuguesa. “Então, estamos recebendo nas licenciaturas candidatos que podem ter dificuldades de linguagem e compreensão de leitura.”
Segundo Bernardete, esse é um efeito duradouro, uma vez que a universidade, de forma geral, não consegue suprir essas deficiências. Para Isaías Carvalho, esta é uma visão elitista. “Muitos professores capacitados ingressam nas escolas e estão mudando essa realidade. Esse discurso acaba jogando toda a culpa nos professores”, reclama.
Desde 2006, Isaías Carvalho trabalha como professor do Ensino Fundamental II e Ensino Médio em uma escola estadual em São Paulo. Oriundo de formação em escolas públicas, Isaías também é formado pelo Senai e chegou a trabalhar como técnico em refrigeração. Só conseguiu passar pelo “gargalo do vestibular” por causa do esforço de alguns professores da escola em que estudava na Vila Prudente, zona leste de São Paulo. Voluntariamente, os professores davam aulas de reforço pré-vestibular de graça para os alunos, nos fins de semana. “Os alunos se organizavam para comprar as apostilas”, lembra. Foi durante uma participação como assistente de um professor na escola de japonês em que estudava que Antônio Marcos Bueno, de 21 anos, resolveu tornar-se professor. “Um sentimento único me tocou”, exclama. Em busca do objetivo, saiu de Manaus, onde morava, e mudou-se para São Paulo. Depois de quase dois anos de cursinho pré-vestibular, Antônio Marcos está prestes a se mudar para a cidade de Assis, no interior do Estado, onde vai cursar Letras, com habilitação em japonês.
Entretanto, essa visão enraizada na cultura brasileira de que ser professor é uma missão ou vocação – e não uma profissão – acaba contribuindo para a desvalorização do profissional. “Socialmente, a representação do professor não é a de um profissional. É a de um cuidador, quase um sacerdote, que faz seu trabalho por amor. Claro que todo mundo tem de ter amor, mas é preciso aliar isso a uma competência específica para a função, ou seja, uma profissionalização”, resume Bernardete.
Contra a corrente
Ainda assim, o idealismo e a vontade de mudar o mundo ainda permanecem como fortes componentes na hora de optar pelo magistério. Anderson Mizael, de 32 anos, teve uma trajetória diferente da maioria dos seus colegas da PUC-SP. Criado na periferia de São Paulo, Anderson sempre estudou em escolas públicas. Adulto, trabalhou durante cinco anos como designer gráfico antes de resolver voltar a estudar. Bolsista do ProUni, que ajuda a financiar a mensalidade, Anderson é um dos poucos do curso de Letras que almejam a posição de professor de Literatura. “Eu tenho esse lado social da profissão. O ensino público está precisando de bons professores, de gente nova”, explica ele, que acaba de conseguir o primeiro estágio em sala de aula, em uma escola no Campo Limpo, zona sul da capital. Ana, que hoje trabalha em uma escola de elite, sonha em dar aula na rede pública. “São os que mais precisam.” “Eu sempre quis ser professora, desde criança”, arremata Ligia.
A empolgação é atenuada pela realidade da escola – com as já conhecidas salas lotadas, falta de material e muita burocracia. Ligia Reis reclama. “Cheguei, ganhei um apagador e só. Não existe nenhum roteiro, nenhum amparo”, conta. “Às vezes, você é um ótimo professor, tem várias ideias, mas a escola não ajuda em nada”, desabafa. Ligia também conta que, para grande parte de seus colegas de graduação, dar aula é a última opção. “A maioria quer ser tradutor ou trabalhar em editoras. É um quadro muito triste.”
Como constatou Ligia, de forma geral, jovens oriundos de classes mais favorecidas, teoricamente com uma formação mais sólida e maior bagagem cultural, acabam procurando outros mercados na hora de escolher uma profissão. “Eles procuram carreiras que oferecem perspectivas de progresso mais visíveis, mais palpáveis”, explica Bernardete. Um dos motivos que os jovens dizem ter para não escolher a profissão de professor é que eles não veem estímulo no magistério e os salários são muito baixos, em relação a outras carreiras possíveis. “Meu avô disse para eu prestar Farmácia, que estava na moda”, lembra Ana.
A busca pela valorização da carreira de professor passa também, mas não somente, por políticas de aumento salarial. Além de pagar mais, é preciso que o magistério tenha uma formação mais sólida e, principalmente, um plano de carreira efetivo. “Um plano em que o professor sinta que pode progredir salarialmente, a partir de alguns quesitos. Mas que ele, com essa dedicação, possa vir a ter uma recompensa salarial forte”, conclui a pesquisadora.
Anderson, Ligia, Ana, Isaías, Antônio e Fernando torcem para que essa perspectiva se torne realidade. “Eu acho que, felizmente, as pessoas estão começando a tomar consciência do papel do professor. É uma profissão que, no futuro, vai ser valorizada”, torce Anderson. “É uma profissão, pessoalmente, muito gratificante.” “Às vezes, eu chego à escola morta de cansaço, mas lá esqueço tudo. É muito gostoso”, conta Ana.
Foto: Masao Goto Filho
http://www.controversia.com.br/index.php?act=textos&id=8944
Tory Oliveira
Você é louca!” “É tão inteligente, sempre gostou de estudar, por que desperdiçar tudo com essa carreira?” Ligia Reis (foto a dir.), de 23 anos, ouviu essas e outras exclamações quando decidiu prestar vestibular para Letras, alimentada pela ideia de se tornar professora na Educação Básica. Nas conversas com colegas mais velhos de estágio, no curso de História, Isaías de Carvalho, de 29 anos, também era recebido com comentários jocosos. “Vai ser professor? Que coragem!” Estudante de um colégio de classe média alta em São Paulo, Ana Sordi (foto a esq.), de 18 anos, foi a única estudante de seu ano a prestar vestibular para Pedagogia. E também ouviu: “Você vai ser pobre, não vai ter dinheiro”. Apesar das críticas, conselhos e reclamações, Ligia, Isaías e Ana não desistiram. No quinto ano de Letras na USP, Ligia hoje trabalha como professora substituta em uma escola pública de São Paulo. Formado em História pela Unesp e no quarto ano de Pedagogia, Isaías é professor na rede estadual na cidade de São Paulo. No segundo ano de Pedagogia na USP, Ana acompanha duas vezes por semana os alunos do segundo ano na Escola Viva.
Quando os três falam da profissão, é com entusiasmo. Pelo que indicam as estatísticas, Ligia, Isaías e Ana fazem parte de uma minoria. Historicamente pressionados por salários baixos, condições adversas de trabalho e sem um plano de carreira efetivo, cursos de Pedagogia e Licenciatura – como Português ou Matemática – são cada vez menos procurados por jovens recém-saídos do Ensino Médio. Em sete anos, nos cursos de formação em Educação Básica, o núsmero de matriculados caiu 58%, ao passar de 101.276 para 42.441.
Atrair novas gerações para a carreira de professor está se firmando como um dos maiores desafios a ser enfrentado pela Educação no Brasil. Não por acaso, a valorização do educador é uma das principais metas do novo Plano Nacional de Educação. Uma olhadela na história da educação mostra que não é de hoje que a figura do professor é institucionalmente desvalorizada. “Há textos de governadores de província do século XIX que já falavam que ia ser professor aquele que não sabia ser outra coisa”, explica Bernardete Gatti, da Fundação Carlos Chagas, coordenadora da pesquisa Professores do Brasil: Impasses e desafios. No entanto, entre as décadas de 1930 e 1950, a figura do professor passou a ter um valor social maior. Tal perspectiva, porém, modificou-se novamente a partir da expansão do sistema de ensino no Brasil, que deixou de atender apenas a elite e passou a buscar uma universalização da educação. Desordenada, a expansão acabou aligeirando a formação do professor, recrutando muitos docentes leigos e achatando brutalmente os salários da categoria como um todo.
Raio X
Encomendada pela Unesco, a pesquisa Professores do Brasil: Impasses e desafios revelou que, em geral, o jovem que procura a carreira de professor hoje no Brasil é oriundo das classes mais baixas e fez sua formação na escolas públicas. Segundo dados do questionário socioeconômico do Enade de 2005, 68,4% dos estudantes de Pedagogia e de Licenciatura cursaram todo o Ensino Médio no setor público. “De um lado, você tem uma -implicação muito boa. São jovens que estão procurando ascensão social num projeto de vida e numa profissão que exige uma formação superior. Então, eles vêm com uma motivação muito grande.”
É o caso de Fernando Cardoso, de 26 anos. Professor auxiliar do quinto ano do Ensino Fundamental da Escola Viva, Fernando é a primeira pessoa de sua família a completar o Ensino Superior. Sua primeira graduação, em Educação Física, foi bastante comemorada pela família de Mogi-Guaçu, interior de São Paulo. O mesmo aconteceu quando ele resolveu cursar a segunda faculdade, de Pedagogia.
Entretanto, pondera Bernardete, grande parte desse contingente também chega ao Ensino Superior com certa “defasagem” em sua formação. A pesquisadora cita os exemplos do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), que revela resultados muito baixos, especialmente no que diz respeito ao domínio de Língua Portuguesa. “Então, estamos recebendo nas licenciaturas candidatos que podem ter dificuldades de linguagem e compreensão de leitura.”
Segundo Bernardete, esse é um efeito duradouro, uma vez que a universidade, de forma geral, não consegue suprir essas deficiências. Para Isaías Carvalho, esta é uma visão elitista. “Muitos professores capacitados ingressam nas escolas e estão mudando essa realidade. Esse discurso acaba jogando toda a culpa nos professores”, reclama.
Desde 2006, Isaías Carvalho trabalha como professor do Ensino Fundamental II e Ensino Médio em uma escola estadual em São Paulo. Oriundo de formação em escolas públicas, Isaías também é formado pelo Senai e chegou a trabalhar como técnico em refrigeração. Só conseguiu passar pelo “gargalo do vestibular” por causa do esforço de alguns professores da escola em que estudava na Vila Prudente, zona leste de São Paulo. Voluntariamente, os professores davam aulas de reforço pré-vestibular de graça para os alunos, nos fins de semana. “Os alunos se organizavam para comprar as apostilas”, lembra. Foi durante uma participação como assistente de um professor na escola de japonês em que estudava que Antônio Marcos Bueno, de 21 anos, resolveu tornar-se professor. “Um sentimento único me tocou”, exclama. Em busca do objetivo, saiu de Manaus, onde morava, e mudou-se para São Paulo. Depois de quase dois anos de cursinho pré-vestibular, Antônio Marcos está prestes a se mudar para a cidade de Assis, no interior do Estado, onde vai cursar Letras, com habilitação em japonês.
Entretanto, essa visão enraizada na cultura brasileira de que ser professor é uma missão ou vocação – e não uma profissão – acaba contribuindo para a desvalorização do profissional. “Socialmente, a representação do professor não é a de um profissional. É a de um cuidador, quase um sacerdote, que faz seu trabalho por amor. Claro que todo mundo tem de ter amor, mas é preciso aliar isso a uma competência específica para a função, ou seja, uma profissionalização”, resume Bernardete.
Contra a corrente
Ainda assim, o idealismo e a vontade de mudar o mundo ainda permanecem como fortes componentes na hora de optar pelo magistério. Anderson Mizael, de 32 anos, teve uma trajetória diferente da maioria dos seus colegas da PUC-SP. Criado na periferia de São Paulo, Anderson sempre estudou em escolas públicas. Adulto, trabalhou durante cinco anos como designer gráfico antes de resolver voltar a estudar. Bolsista do ProUni, que ajuda a financiar a mensalidade, Anderson é um dos poucos do curso de Letras que almejam a posição de professor de Literatura. “Eu tenho esse lado social da profissão. O ensino público está precisando de bons professores, de gente nova”, explica ele, que acaba de conseguir o primeiro estágio em sala de aula, em uma escola no Campo Limpo, zona sul da capital. Ana, que hoje trabalha em uma escola de elite, sonha em dar aula na rede pública. “São os que mais precisam.” “Eu sempre quis ser professora, desde criança”, arremata Ligia.
A empolgação é atenuada pela realidade da escola – com as já conhecidas salas lotadas, falta de material e muita burocracia. Ligia Reis reclama. “Cheguei, ganhei um apagador e só. Não existe nenhum roteiro, nenhum amparo”, conta. “Às vezes, você é um ótimo professor, tem várias ideias, mas a escola não ajuda em nada”, desabafa. Ligia também conta que, para grande parte de seus colegas de graduação, dar aula é a última opção. “A maioria quer ser tradutor ou trabalhar em editoras. É um quadro muito triste.”
Como constatou Ligia, de forma geral, jovens oriundos de classes mais favorecidas, teoricamente com uma formação mais sólida e maior bagagem cultural, acabam procurando outros mercados na hora de escolher uma profissão. “Eles procuram carreiras que oferecem perspectivas de progresso mais visíveis, mais palpáveis”, explica Bernardete. Um dos motivos que os jovens dizem ter para não escolher a profissão de professor é que eles não veem estímulo no magistério e os salários são muito baixos, em relação a outras carreiras possíveis. “Meu avô disse para eu prestar Farmácia, que estava na moda”, lembra Ana.
A busca pela valorização da carreira de professor passa também, mas não somente, por políticas de aumento salarial. Além de pagar mais, é preciso que o magistério tenha uma formação mais sólida e, principalmente, um plano de carreira efetivo. “Um plano em que o professor sinta que pode progredir salarialmente, a partir de alguns quesitos. Mas que ele, com essa dedicação, possa vir a ter uma recompensa salarial forte”, conclui a pesquisadora.
Anderson, Ligia, Ana, Isaías, Antônio e Fernando torcem para que essa perspectiva se torne realidade. “Eu acho que, felizmente, as pessoas estão começando a tomar consciência do papel do professor. É uma profissão que, no futuro, vai ser valorizada”, torce Anderson. “É uma profissão, pessoalmente, muito gratificante.” “Às vezes, eu chego à escola morta de cansaço, mas lá esqueço tudo. É muito gostoso”, conta Ana.
Foto: Masao Goto Filho
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