José Ribamar Bessa Freire
29/04/2007 - Diário do Amazonas
Peru, 1975. Dentro de um táxi, enfrento o trânsito caótico das ruas de Lima. O motorista realiza manobras ilegais e perigosas, correndo como um alucinado, furando sinais, xingando, entrando na contramão. Costura daqui, costura dali. Na Avenida La Marina, tenta ultrapassagem temerária pela direita. Coloco meu braço pra fora, abanando freneticamente a mão para avisar o outro carro que ia ser fechado. Contrariado, o taxista me repreende. Explico: só estou querendo ajudar. Ele liquida o assunto:
- No hagas eso! Si no van a pensar que no soy macho.
O taxista estava convencido de que sinalizar era demonstrar medo e que dar uma fechada provava sua coragem e virilidade. Por isso, preferia arriscar mil vidas a ser considerado um ‘maricón’. Quando homens necessitam dirigir agressivamente para afirmar sua masculinidade é porque a sociedade está doente e as normas de convivência foram para o beleléu. Mais grave ainda quando alguém defende que é exatamente assim que os professores devem educar seus alunos: formando machos e não boiolas.
A pedagogia do taxista
Essa é a tese de Olavo de Carvalho em artigo ‘Educando para a boiolice’ no Diário do Comércio, no qual discute a responsabilidade pelo massacre ocorrido na Virginia Tech. Ele pergunta: “Por que ninguém atacou o coreano maluco enquanto ele recarregava sua pistola?” A resposta é contundente: por causa da “epidemia de frescura na escola”, que forma alunos “tímidos, fracotes e efeminados”. O autor usa depoimento de seu filho Pedro, que estudou um ano e meio na Virginia. O rapaz, falando por experiência própria, confirma: "É uma educação para boiolas".
Não sabemos se Pedro, filho de peixe, foi bom aluno. Mas seu pai adverte que boiola - cujo equivalente em inglês é sissy - “não é necessariamente um gay”. Boiolice nada tem a ver com o sexo, é “uma covardia abjeta, um desfibramento da alma, uma pusilanimidade visceral que os educadores de hoje em dia consideram o suprassumo da perfeição moral. É a fórmula da pedagogia usada nas escolas públicas americanas”.
Se os jovens são obrigatoriamente efeminados é porque “passam o ano inteiro só aprendendo boiolice”, ensinada em “cada página dos manuais didáticos” e nas aulas. “Cada vez que um professor abre a boca em sala de aula, espalha mais um pouco desse entorpecente pedagógico nos cérebros infanto-juvenis”.
Contra tais princípios, o autor defende pedagogia similar a do taxista: “As escolas têm de ensinar os meninos a serem mais agressivos”. Justifica, afirmando que a bandidagem só ataca nas escolas porque sabe que os estudantes são boiolas. Propõe: “As escolas têm de planejar sua defesa e reagir com igual agressividade. O treinamento tem de ser tão intensivo e levado tão a sério quanto o assassino leva a sério sua missão de matar”.
A Escola do Carvalho
Segundo o autor, o modelo que transforma a sala de aula num campo de batalha deve ser implantado, no Brasil, cuja situação é ainda “mais desesperadora que a dos americanos” porque no nosso país “a boiolice está espalhada entre homens adultos, nas ruas, nas fábricas, nos escritórios e essa gente tem medo de armas até quando vistas pelo lado do cabo”. Faça o teste, leitor, para saber se você é boiola!
Fico imaginando o ‘treinamento intensivo’ nessa que é uma escola do cacete, digo, do carvalho. No currículo do Maternal, para aquecer as crianças, devem constar obrigatoriamente as disciplinas “Xingamentos e Palavrões” “Tapas, Bofetes e Mordidas” e “Pistolas de água”. No Ensino Fundamental seriam ministradas “Armas brancas” e depois “Introdução ao manejo de armas de fogo”, como pré-requisito para “Técnicas de Pontaria”, “Tiro ao alvo I e II” e “Explosivos e Granadas”.
O leitor amazonense, perplexo, se pergunta: “Mas, afinal, quem é Olavo de Carvalho no jogo do bicho?” A página pessoal do dito cujo na internet não economiza auto-elogios e afirma na maior cara-de-pau: “Olavo de Carvalho, nascido em Campinas, SP, em 29 de abril de 1947, tem sido saudado pela crítica como um dos mais originais e audaciosos pensadores brasileiros”. Eita ferro! Não é gozação não! Juro que está escrito assim. Qualquer leitor pode ir lá e conferir.
Ex-colunista do jornal O Globo, da revista Época e do diário Zero Hora, Olavo de Carvalho foi desligado, quando descobriram que ele não é aquilo que ele diz que é. Revoltado, escreveu: “Querem saber do que mais? O corte brutal do meu orçamento doméstico é, nas presentes condições, uma libertação. Vou mais é para Virginia Beach tomar banho de mar e participar da alegria nacional deste país hospitaleiro e generoso. O Globo que se dane”.
Comicidade intraduzível
O Globo não se danou, mas Olavo hoje mora em Richmond, na Virginia. No entanto, o visto de residência concedido pelo ‘país hospitaleiro’ não lhe permite exercer trabalho remunerado. Sua página na internet, escrita por ele próprio, explica que é difícil os americanos entenderem seus ensaios eruditos, porque ele usa “a linguagem popular, incluindo muitos jogos de palavras do dia-a-dia brasileiro, de grande comicidade, praticamente intraduzíveis”, o que confere aos textos “uma profundidade surpreendente”.
A profundidade é discutível, mas quanto à comicidade, ele tem razão: ela é intraduzível até ao português. Por essa razão, Carvalho sobrevive ministrando cursos à distância de História da Filosofia para alunos no Brasil, escrevendo para o Jornal do Brasil e o Diário do Comércio e recebendo contribuição de admiradores, entre os quais estão militantes da Ação Integralista Brasileira, organização de extrema-direita.
Olavo de Carvalho parece que não perdoa o fato de ter ficado de fora da academia. Por isso, esculhamba as universidades e os intelectuais. “A USP sempre foi o templo da vigarice intelectual”, ele escreve. Marilena Chauí e Artur Gianotti são “impostores”. Em contrapartida, é motivo de chacota nas universidades, onde ninguém o leva a sério.
Henrique Sobreira, professor da UERJ, fez a maior gozação: “Depois de décadas ‘dormindo na caixa’, Olavo de Carvalho, finalmente, ‘saiu do armário’. A comunidade GLS, que suportou anos a fio o seu destilado preconceito, lhe dá uma solene ‘beijoca’ de boas vindas ao Clube cor-de-rosa”. Ele recomendou que Olavo lesse vários textos do filósofo alemão Theodor Adorno, nos quais analisa o conceito de “educação para a dureza”, próprio do facismo. Gilberto Moraes, outro professor da UERJ, da área de Engenharia, acredita que “Olavo nunca esteve diante de uma arma, passível de tomar um tiro de um bandido”.
O que Carvalho não entende é que a vitória do pensamento macho-taxista-carvalhista é a morte da sociedade. Não é a escola que deve ficar “macha”, mas a sociedade que deve viver os valores humanistas. Isso é possível, conforme Nelson Mandela, porque “ninguém nasce odiando outra pessoa pela cor de sua pele, por sua origem ou ainda por sua religião. Para odiar, as pessoas precisam aprender. E se podem aprender a odiar, podem ser ensinadas a amar”. Mas para isso é necessário, com todo respeito, aquilo que Carvalho denomina de uma “escola-boiola”. Vai ver o negão Mandela falou isso porque é ‘boiola’, pensará Carvalho, que é macho pacas.
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