Escritora despejada do apartamento, depois de viver alguns anos do seu trabalho, denuncia na Feira do Livro de Porto Alegre o sistema literário e a ação dos monopólios
13/12/2010
Sidnei Schneider
O que a escritora e mestre em literatura Telma Scherer fez na Feira do Livro de Porto Alegre, através da denúncia da casinha de cachorro do escritor e da elegância das bolinhas de sabão da sua performance, foi apontar o dedo na testa dos lançadores de livros estrangeiros enlatados, que acabam por definir toda a cadeia produtiva do livro no Brasil, com reflexos nas feiras e bienais, nas editoras e livrarias, e na vida de todo escritor e leitor. Ao dizer aos policiais e ao público que a truculenta ação daqueles estava “mandando as pessoas para casa ler Dan Brown”, ela sabia do que falava. Também, quando declarou nas entrevistas que o protesto não era “contra uma pessoa ou instituição”, mas “contra o sistema literário”, e “se o chapéu serviu em alguém” não podia fazer nada. Perdoem-me alguns amigos, mas o alcance desse protesto não pode ser reduzido ao espaço geográfico de uma praça ou cidade. Minimizá-lo assim é ainda nos deixar levar por um sentimento provinciano a ser superado.
Há cerca de um par de décadas, corporações globais com uma prática de arrasa quarteirão passaram a jogar pesado no mercado nacional, um dos maiores do mundo apesar do ainda reduzido hábito de leitura dos brasileiros. Setor altamente monopolizado, os doze maiores grupos editoriais do planeta, segundo pesquisa da consultoria Euromonitor, são responsáveis por 52% das vendas em 19 países de grande mercado, incluído o Brasil. Os quatro maiores (Bertelsmann, Thompson, Pearson e Vivendi) detêm 36%. O monopólio francês Vivendi (Laboratório Roche, Nestlé, Água Perrier, Pure Life) controla aqui as editoras Ática e Scipione, desnacionalizando o setor do livro didático. A transnacional Santillana, espanhola como as editoras Planeta e Oceano, é dona da Moderna, também especializada em livros didáticos, e controla 75% da Objetiva. O grupo Record (editoras Record, Bertrand, Civilização Brasileira, José Olympio, Best Seller e Verus) seguidamente é sondado pelo capital estrangeiro, para o qual não existem barreiras legais, como no Canadá. Desde 2003, das dez maiores editoras locais, sete são estrangeiras. Editando uma enxurrada de publicações de baixa qualidade, esses grupos têm comprado o passe de escritores brasileiros importantes, mas nada garante que não os abandonem na primeira oportunidade.
Com campanhas milionárias de divulgação, fazem o seu produto, papel encadernado com textos pífios, aparecer nos grandes jornais, revistas semanais ou pseudoculturais e programas de tevê. O até então desconhecido autor internacional será objeto de entrevistas e, se possível, comparecerá a feiras e bienais do livro. De maneira que até o único jornal de uma cidade pequena, impotente ante a avalanche, vai tomar espontaneamente esse livro como tema.
Essa ação, pensada globalmente desde fora do nosso país, acaba fazendo com que o distribuidor aposte mais nesses títulos (se já não for oligopolizado), a megastore os priorize nas suas geralmente péssimas revistas, grande parte dos livreiros (os guerreiros da cultura e do saber estão minguados, mas ainda existem) os coloque nas vitrines ou nas bancas de alguma feira. Ficando prejudicada a literatura brasileira e o que de bom poderia nos chegar de fora.
O leitor, de sua parte, compra um livro do qual pelo menos já ouviu falar. A inocência nos impede de pensar que o jabaculê corre solto para que o produto se afirme e comece a aparecer na lista dos mais vendidos da Veja. A mensagem da lista é clara: se todo mundo está comprando o livro deve ser bom, compre-o também. Assim, depois de algum tempo, o que era mera sugestão começa a se aproximar da realidade de vendas, mesmo que o leitor depois se frustre ou nem leia o livro, como demonstram pesquisas em outros países. No dia em que escrevo, sem entrar no mérito de cada obra, dos vinte livros de ficção mais vendidos, apenas quatro são de autores brasileiros.
A tiragem gigantesca dos livros enlatados barateia o custo gráfico-editorial unitário do produto para bem menos do que 10% do preço de capa, sem nenhum reflexo para o consumidor. Ao contrário, quanto mais dominam a área, mais livres se sentem para colocar o preço que quiserem, nunca transferindo a isenção de impostos a que o livro faz jus. Na verdade, encarecem o custo de produção e o preço final de todos os outros livros editados no país. Como? Vejamos: depois do furacão global de alto faturamento, sobra o quê para o “mercado”? Tentar colocar edições de mil a três mil exemplares em todo o país, sem nenhum carro chefe de vendas como uma vez o foram Jorge Amado e Erico Verissimo, e, mais recentemente, um ou outro como Cristóvão Tezza, ao conseguir emplacar uma edição (este pela Record, o maior grupo editorial de literatura do país). Em escala pequena, uma atividade muito mais trabalhosa, e o que é pior, em condições completamente injustas quanto à publicidade. Edições pequenas saem unitariamente mais caras, e para vendê-las, pagar as contas e obter um mínimo de retorno, também não são oferecidas por um valor menor. Além de tudo, muitas empresas quebram e são engolidas. O autor brasileiro, que recebe apenas 10% do preço do livro vendido, não raro é convidado a esperar ou a renegociar o pouco que lhe caberia. Quando não, a pagar à editora para ser publicado. O país perde com a menor circulação de idéias e da verdadeira arte literária.
O escritor, o poeta, aquele que trabalha três, cinco, dez anos para finalizar uma obra, mesmo tendo conquistado o apreço dos leitores e o seu espaço enquanto autor reconhecido, como é que fica? Ou vai trabalhar em outra área ou vai ficar sem condições de vida, semelhante ao que aconteceu a Telma. Exceções existem, mas dependem exageradamente da visibilidade do autor na mídia, quase sempre os que nela trabalham.
Assim, se você, depois de alguns anos tentando viver da escrita, perdeu a sua casa, os seus móveis, teve que enviar os livros para a casa dos pais no interior e, o pior do pior, ficou sem local de trabalho para, como no caso de Telma, terminar um romance, deve agradecer aos céus, e não ir para a Feira do Livro com uma performance artística que sensibilize o público. Esse é o recado de quem chamou a Brigada Militar.
A nota oficial da Câmara Rio-Grandense do Livro, endossando a versão de que a Brigada Militar foi chamada por “mãe e filho cadeirante que não conseguiram prosseguir em um corredor do evento” não é das mais edificantes que essa instituição já emitiu. Os policiais talvez não tenham entendido o recado de Telma, mas seguramente ele não estava fora do alcance dos organizadores da Feira.
Melhor avaliar bem de que lado se está nesse jogo: do lado das corporações, submetendo-se a elas, e correndo o risco de mais tarde ser engolido, na medida em que cada vez mais compram empresas brasileiras em dificuldades, ou do lado dos escritores e produtores, da arte e da literatura, e da própria economia nacional. Em suma, da civilização ou do que leva à barbárie.
Não dá para fazer nada? Dá sim, a grande repercussão do caso e a solidariedade que Telma recebeu o demonstram. E o novo governo federal precisa tratar urgentemente da questão livro. Pode demorar um pouquinho resolver tudo isso, mas já nos livramos de coisas bem piores como sabe o leitor.
Sidnei Schneider é poeta, tradutor e contista. Autor dos livros de poesia Quichiligangues (Dahmer, 2008), Plano de Navegação (Dahmer, 1999) e da tradução Versos Singelos/José Martí (SBS, 1997).
Transcrito do Brasil de Fato
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